[:o] "A Lógica é, na verdaDe, inabalável, mas ela não resiste a uma pessoa que quer viver" Kafka [;)]

domingo, 27 de março de 2011

o ESTRANHO Freud



O ESTRANHO (1919) , VOLUME XVII


um dos textos que mais gosto, por discorrer sobre o estranho e o familiar (outro é repetir, recordar e elaborar):

Só raramente um psicanalista se sente impelido a pesquisar o tema da estética, mesmo quando por estética se entende não simplesmente a teoria da beleza, mas a teoria das qualidades do sentir. O analista opera em outras camadas da vida mental e pouco tem a ver com os impulsos emocionais dominados, os quais, inibidos em seus objetivos e dependentes de uma hoste de fatores simultâneos, fornecem habitualmente o material para o estudo da estética. Mas acontece ocasionalmente que ele tem de interessar-se por algum ramo particular daquele assunto; e esse ramo geralmente revela-se um campo bastante remoto, negligenciado na literatura especializada da estética.

O tema do ‘estranho’ é um ramo desse tipo. Relaciona-se indubitavelmente com o que é assustador — com o que provoca medo e horror; certamente, também, a palavra nem sempre é usada num sentido claramente definível, de modo que tende a coincidir com aquilo que desperta o medo em geral. Ainda assim, podemos esperar que esteja presente um núcleo especial de sensibilidade que justificou o uso de um termo conceitual peculiar. Fica-se curioso para saber que núcleo comum é esse que nos permite distinguir como ‘estranhas’ determinadas coisas que estão dentro do campo do que é amedrontador.

Nada em absoluto encontra-se a respeito deste assunto em extensos tratados de estética, que em geral preferem preocupar-se com o que é belo, atraente e sublime — isto é, com sentimentos de natureza positiva — e com as circunstâncias e os objetivos que os trazem à tona, mais do que com os sentimentos opostos, de repulsa e aflição. Conheço apenas uma tentativa na literatura médico-psicológica, um artigo fértil, mas não exaustivo, de Jentsch (1906). Mas devo confessar que não fiz um exame muito completo da literatura relacionada com esta minha modesta contribuição, particularmente da literatura estrangeira, por razões que, como pode ser facilmente adivinhado, estão nos tempos em que vivemos; de forma que meu artigo é apresentado ao leitor sem qualquer pretensão de prioridade.

Em seu estudo do ‘estranho’, Jentsch destaca com muita razão o obstáculo apresentado pelo fato de que as pessoas variam muito na sua sensibilidade a essa categoria de sentimento. De fato, o próprio autor da presente contribuição deve declarar-se culpado de particular obtusidade na matéria, onde a extrema delicadeza de percepção seria mais adequada. Há muito tempo que não experimenta ou sabe de algo que lhe tenha dado uma impressão estranha, e deve começar por transpor-se para esse estado de sensibilidade, despertando em si a possibilidade de experimentá-lo. Todavia, tais dificuldades fazem-se sentir poderosamente em muitos outros ramos da estética; não precisamos, por causa disso, desanimar de encontrar exemplos nos quais a qualidade em questão será reconhecida sem hesitações pela maioria das pessoas.

De início, abrem-se-nos dois rumos. Podemos descobrir que significado veio a ligar-se à palavra ‘estranho’ no decorrer da sua história; ou podemos reunir todas aquelas propriedades de pessoas, coisas, impressões sensórias, experiências e situações que despertam em nós o sentimento de estranheza, e inferir, então, a natureza desconhecida do estranho a partir de tudo o que esses exemplos têm em comum. Direi, de imediato, que ambos os rumos conduzem ao mesmo resultado: o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar. Como isso é possível, em que circunstâncias o familiar pode tornar-se estranho e assustador, é o que mostrarei no que se segue. Acrescente-se também que minha investigação começou realmente ao coligir uma série de casos individuais, e só foi confirmada mais tarde por um exame do uso lingüístico. Na exposição que farei, contudo, seguirei o curso inverso.

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