[:o] "A Lógica é, na verdaDe, inabalável, mas ela não resiste a uma pessoa que quer viver" Kafka [;)]

segunda-feira, 28 de março de 2011

VitorAmil!


Puxa, me enlouqueci com a expectativa de ler este músico...
ele escreve muito bem, ou foi minha súbita paixão (AMOR)


A Estética do Frio

Sinto-me um pouco discípulo daqueles para quem,
na descrição de Paul Valéry, o tempo não conta;
aqueles que se dedicam a uma espécie de ética da forma,
que leva ao trabalho infinito.

Eu me chamo Vitor Ramil. Sou brasileiro, compositor, cantor e escritor. Venho do estado do Rio Grande do Sul, capital Porto Alegre, extremo sul do Brasil, fronteira com Uruguai e Argentina, região de clima temperado desse imenso país mundialmente conhecido como tropical.

A área territorial do Rio Grande do Sul equivale, aproximadamente, à da Itália. Sua gente, os rio-grandenses, também conhecidos como gaúchos, aparentam sentir-se os mais diferentes em um país feito de diferenças. Isso deve-se, em grande parte, à sua condição de habitantes de uma importante zona de fronteira, com características únicas, a qual formaram e pela qual foram formados (o estado possui duas fronteiras com países estrangeiros de língua espanhola); à forte presença do imigrante europeu, principalmente italiano e alemão, nesse processo de formação; ao clima de estações bem definidas e ao seu passado de guerras e revoluções, como os embates durante três séculos entre os impérios coloniais de Portugal e Espanha por aquilo que é hoje nosso território e a chamada Revolução Farroupilha (1835–1845), que chegou a separar o estado do resto do Brasil, proclamando a República Rio-Grandense.

Se no passado o estado antecipou-se em ser uma república durante a vigência do regime monarquista no país, no cenário político nacional desta virada de século, marcado pela desigualdade social, a capital Porto Alegre tornou-se referência internacional como modelo bem sucedido de política com participação popular.

Vou falar o mais brevemente possível sobre a minha experiência como artista no Rio Grande do Sul e no Brasil. É importante começar dizendo que essa conferência é uma exposição de minhas reflexões acerca de minha própria produção artística e seu contexto cultural e social. Do tema, a estética do frio, não se pretende, em hipótese alguma, uma formulação normativa. As idéias aqui expostas são fruto da minha intuição e do que minha experiência reconhece como senso comum. A extensão do assunto e o pouco tempo para expô-lo não me permitem desenvolver suficientemente alguns pontos. Mas convido a todos para um debate após esta exposição, para que possamos retomar o que for de seu interesse e compartilhar novas reflexões.

Nasci no interior, mais ao Sul do que Porto Alegre, na cidade de Pelotas, que em alguns dos meus textos e canções aparece com seu nome em anagrama: Satolep. Minha vida profissional começou e se desenvolveu em Porto Alegre. No entanto gravei quase todos os meus discos no Rio de Janeiro, centro do país e do mercado da música popular brasileira. A exceção é o meu mais recente CD, Tambong, gravado em Buenos Aires, Argentina.*

Aos dezoito anos gravei meu primeiro disco, Estrela, Estrela; aos vinte e quatro troquei Porto Alegre pelo Rio de Janeiro, onde morei por cinco anos. Vivi esse período no bairro de Copacabana, praia símbolo do verão brasileiro, onde, apesar do clima de mudanças discretas entre as estações e do predomínio do calor, mantive sempre alguns hábitos do frio, como o chimarrão, um tradicional chá quente de erva-mate.

Em Copacabana, num dia muito quente do mês de junho (justamente quando começa o inverno no Brasil), eu tomava meu chimarrão e assistia, em um jornal na televisão, à transmissão de cenas de um carnaval fora de época, no Nordeste, região em que faz calor o ano inteiro (o carnaval brasileiro é uma festa de rua que acontece em todo o país durante o verão). As imagens mostravam um caminhão de som que reunia à sua volta milhares de pessoas seminuas a dançar, cantar e suar sob sol forte. O âncora do jornal, falando para todo o país de um estúdio localizado ali no Rio de Janeiro, descrevia a cena com um tom de absoluta normalidade, como se fosse natural que aquilo acontecesse em junho, como se o fato fizesse parte do dia-a-dia de todo brasileiro. Embora eu estivesse igualmente seminu e suando por causa do calor, não podia me imaginar atrás daquele caminhão como aquela gente, não me sentia motivado pelo espírito daquela festa.

A seguir, o mesmo telejornal mostrou a chegada do frio no Sul, antecipando um inverno rigoroso. Vi o Rio Grande do Sul: campos cobertos de geada na luz branca da manhã, crianças escrevendo com o dedo no gelo depositado nos vidros dos carros, homens de poncho (um grosso agasalho de lã) andando de bicicleta, águas congeladas, a expectativa de neve na serra, um chimarrão fumegando tal qual o meu. Seminu e suando, reconheci imediatamente o lugar como meu, e desejei estar não em Copacabana, mas num avião rumo a Porto Alegre. O âncora, por sua vez, adotara um tom de quase incredulidade, descrevendo aquelas imagens do frio como se retratassem outro país (chegou a defini-las como de “clima europeu”).

Aquilo tudo causou em mim um forte estranhamento. Eu me senti isolado, distante. Não do Rio Grande do Sul, que estava mesmo muito longe dali, mas distante de Copacabana, do Rio de Janeiro, do centro do país. Pela primeira vez eu me sentia um estranho, um estrangeiro em meu próprio território nacional; diferente, separado do Brasil. Eu era a comprovação de algo do qual não me julgara, até então, um exemplo: o sentimento de não ser ou não querer ser brasileiro tantas vezes manifesto pelos rio-grandenses, seja em situações triviais do cotidiano, seja na organização de movimentos separatistas.

A sério ou de brincadeira, sempre se falou muito no Rio Grande do Sul em sermos um “país à parte” (nossa bandeira atual é a mesma de quando os revolucionários farroupilhas separaram o estado do resto do país. Vale no entanto dizer que, apesar da imagem que ficou para a história, os farroupilhas não eram separatistas no início de seu movimento). Por ter sempre acreditado que entre falar e sentir havia uma distância enorme, a realidade do meu sentimento era agora perturbadora. Significava que eu não precisava sair à rua pregando o separatismo: eu já estava, de fato, separado do Brasil.

Naquela época, passagem dos anos 80 para os 90, esse tema do “país à parte” estava mais uma vez em voga, e não se poderia encontrar em outra região do país, como ainda hoje não se pode, um povo mais ocupado em questionar a própria identidade que o riograndense. Com isso, o gauchismo e os movimentos separatistas estavam em alta, estes últimos a reboque dos freqüentes protestos de políticos contra o governo federal pela precária situação econômica do estado, manifestações que, muitas vezes, traziam à tona a retórica dos revolucionários do século XIX.

Abro parêntese para comentar o que chamei de gauchismo.

É difícil que as regiões se conheçam bem em um país tão grande como o Brasil. Acabam sempre lançando mão de estereótipos e fixando uma imagem imprecisa umas das outras. A mídia nacional, situada no centro geográfico, enfrenta a mesma dificuldade e, ao tentar dar conta da diversidade, adota os estereótipos regionais, o que termina por reforçá-los. Neste processo, distorções muitas vezes se estabelecem como definições de cores locais.

A palavra gaúcho é, hoje em dia, um gentílico que designa os habitantes do Rio Grande do Sul, e o estereótipo do gaúcho é um dos mais difundidos nacionalmente, se não o mais difundido: misto de homem do campo e herói, que o escritor brasileiro Euclides da Cunha, em seu clássico Os Sertões, definiu como essa existência-quase-romanesca. Popularmente, é visto como valente, machista, bravateiro; um tipo que está sempre vestido a caráter e às voltas com o cavalo, o churrasco e o chimarrão.

Originalmente, gaúcho é o rio-grandense do interior, que trabalha a cavalo em fazendas de criação de gado, o mesmo personagem que, no passado, participou das guerras e revoluções em que o estado se envolveu. É um tipo comum aos vizinhos Uruguai e Argentina, com a diferença de que nesses países gaucho (gaúcho) é simplesmente o homem do campo, nunca um gentílico que designe os habitantes dos centros urbanos. É significativo que, no variado leque de tipos regionais brasileiros, esse mesmo gaúcho tenha se estabelecido como marca de representação de todos os rio-grandenses, justamente ele, que nos vincula aos países vizinhos, que nos “estrangeiriza”.

Já o gauchismo ou tradicionalismo é um amplo movimento organizado que, transitando entre a realidade da vida campeira e seu estereótipo, procura difundir em toda parte o que considera a cultura do gaúcho. O empenho de grupos tradicionalistas em legitimar esse personagem e seu mundo como nossa verdadeira identidade, e a vinculação histórica do gaúcho aos heróis da Guerra dos Farrapos contribuem de forma decisiva para que o estereótipo seja largamente assumido pelos rio-grandenses como imagem de representação. No estado e no país quase já não se fala em rio-grandense, mas em gaúcho.

À parte sua real significação, o gaúcho é um símbolo que, em especial nos momentos em que a auto-afirmação se faz necessária, está sempre à mão, assim como o sentimento separatista.

Falando em identidade e separação, fecho parêntese e volto a Copacabana.

Um carnaval acontecer e ser noticiado com tanta naturalidade em pleno junho me levou a pensar nas regiões do “calor” brasileiro, sua gente e seus costumes, e a conectá-las com o cotidiano do Rio de Janeiro. O espírito da festa podia não repercutir em mim, mas certamente repercutia na maior parte da minha vizinhança carioca e Brasil acima. Apesar de toda a diversidade, eu via no Brasil tropical (generalizo assim para me referir ao Brasil excetuando sua porção subtropical, a Região Sul) linguagens, gostos e comportamentos comuns como sua face mais visível. Sua arte, sua expressão popular trazia sempre como pano de fundo o apelo irresistível da rua, onde o múltiplo, o variado, a mistura que a rua evoca ganhavam forma, sendo a música e o ritmo invariavelmente um convite à festa, à dança e à alegria de uma gente expansiva e agregadora. Havia, de fato, uma estética que se adequava perfeitamente ao clichê do Brasil tropical. E se não se poderia afirmar que ela unificava os brasileiros, uma coisa era certa: nós, do extremo sul, éramos os que menos contribuíam para que ela fosse o que era. O que correspondia tão bem à idéia corrente de brasilidade, falava de nós, mas dizia muito pouco, nunca o fundamental a nosso respeito. Ficava claro porque nos sentíamos os mais diferentes em um país feito de diferenças.

Se minha identidade, de repente, era uma incerteza, por outro lado, ao presenciar as imagens do frio serem transmitidas como algo verdadeiramente estranho àquele contexto tropical (atenção: o telejornal era transmitido para todo o país) uma obviedade se impunha como certeza significativa: o frio é um grande diferencial entre nós e os “brasileiros”. E o tamanho da diferença que ele representa vai além do fato de que em nenhum lugar do Brasil sente-se tanto frio como no Sul. Por ser emblema de um clima de estações bem definidas – e de nossas próprias, íntimas estações; por determinar nossa cultura, nossos hábitos, ou movimentar nossa economia; por estar identificado com a nossa paisagem; por ambientar tanto o gaúcho existência-quase-romanesca, como também o rio-grandense e tudo o que não lhe é estranho; por isso tudo é que o frio, independente de não ser exclusivamente nosso, nos distingue das outras regiões do Brasil. O frio, fenômeno natural sempre presente na pauta da mídia nacional e, ao mesmo tempo, metáfora capaz de falar de nós de forma abrangente e definidora, simboliza o Rio Grande do Sul e é simbolizado por ele.

Precisamos de uma estética do frio, pensei. Havia uma estética que parecia mesmo unificar os brasileiros, uma estética para a qual nós, do extremo sul, contribuíamos minimamente; havia uma idéia corrente de brasilidade que dizia muito pouco, nunca o fundamental de nós. Sentíamo-nos os mais diferentes em um país feito de diferenças. Mas como éramos? De que forma nos expressávamos mais completa e verdadeiramente? O escritor argentino Jorge Luís Borges, que está enterrado aqui em Genebra, escreveu: a arte deve ser como um espelho que nos revela a própria face. Apesar de nossas contrapartidas frias, ainda não fôramos capazes de engendrar uma estética do frio que revelasse a nossa própria face.


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